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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Com a palavra, os Mestres

Náufragos*
Por Marcos Pizzolatto**

 Começou no Domingo de tarde quando um sujeito observou ao atravessar a rua aquele pequeno montículo. Na verdade, não era bem um montículo, estava mais para um olho d'água, só que não de água e sim de fezes.
"Algum cachorro mal-educado !"
Pensou um outro sujeito que por pouco não encheu o pé daquela coisa nojenta.
Um ciclista quase caiu ao passar com o pneu da frente na poça que já havia crescido. Pensou também ele num animal, já que são eles os mais dados a estas peripécias fisiológicas.
Os comerciantes ali da rua comentaram com os garis na segunda-feira de manhã sobre aquela incomoda poça de merda, mas nenhum deles se arriscou a ir até o meio da pista movimentada para remover a dita cuja.
Na terça o diâmetro havia aumentado significativamente. Já cabia um pé inteiro dentro dele.
Na quarta-feira a distração dos comerciantes era observar os pedestres que, além de se esquivarem dos pára-choques, ainda tinham que demonstrar extrema capacidade de reação ao darem, inusitadamente, no meio da travessia, com aquela vertente de merda.
Na quinta-feira o fato chegara aos gabinetes públicos sobre a forma de especulações que diziam ser um arrebentamento do sistema de esgotos. A notícia já havia se espalhado causando acaloradas críticas a empresa de saneamento antes mesmo que essa pudesse explicar ser aquela hipótese impossível, uma vez que a tubulação de detritos não passava por ali.
Na sexta a TV transmitiu ao vivo para o jornal do meio-dia a imagem da poça enquanto o repórter especulava com os transeuntes sobre suas opiniões a respeito da merda.
No Sábado de manhã a prefeitura mandou despejar um caminhão de terra sobre o foço que já tinha uns dois metros de diâmetro. Enquanto a caçamba despejava a boca do buraco engolia a terra. Duas caçambas depois, o engenheiro que havia sido chamado após a primeira carga de terra, concluiu que poderia haver uma falha geológica entre duas camadas de terra; uma espécie de espaço entre duas metades, como disse o repórter em rede nacional dentro do helicóptero que fazia uma tomada aérea da merda que a esta altura já podia engolir um carro pequeno.
A pasta densa e escura começava a incomodar; a atração pública cedera lugar a aversão às moscas e ao cheiro característico. Aqueles que antes se orgulhavam secretamente de serem testemunhas cheias de histórias para contar , tornaram-se temerosos de sua condição de vítima e exigiam que a prefeitura achasse uma solução.
A circunferência crescia na proporção do seu tamanho; quanto maior ficava mais rápido crescia, tanto que no Domingo de manhã já havia engolido toda a extensão da pista e mais o passeio, e ainda ameaçava engolir uma loja de armarinhos. No mesmo dia, à noite, o armarinho já havia sido tragado para a merda, bem como a vídeo-locadora do outro lado da rua.
O avanço da borda da poça era visível. A prefeitura tentou conter a histeria despejando mais terra, depois pedra e depois concreto, mas o único efeito foi o recrudescimento do pânico.
As pessoas mais próximas da margem da poça abandonaram suas casas; outras que iam dormir distantes dela, acordavam já afundando.
A prefeitura, que já afundara, declarara estado de sítio que outra coisa não podia fazer. O prefeito sumira; não se sabe se tragado ou fugido.
O editorial do jornal da noite melodramaticamente anunciara , enquanto imagens do helicóptero eram mostradas, que o exército evacuaria a cidade. Não faltaram piadas sobre o termo:

"Evacuar ? Não precisamos que o exército evacue "na" cidade ! Já tem merda prá todo mundo aqui !"

Nem bem o piadista havia começado a rir e afundava irremediavelmente na merda , junto com todos os outros fregueses do bar onde bebericava todos os dias depois do trabalho.
Uma nova semana começou com o rumorejar da massa de merda que se alastrava tomando já meia cidade para dentro de si.
As mídias organizaram debates e os mais oportunistas escreveram livros que pretendiam responder às perguntas mais absurdas do populacho:

"—Quando a merda nos engole somos levados para algum lugar?"
"—Uma vez na merda transformamo-nos em merda também ?"

A coisa toda crescia de forma que nem mesmo o pudor tinha vez. O, até então sisudo, apresentador do jornal das oito, dizia agora "merda prá lá" e "merda prá cá", sem a menor reserva.
Os habitantes da cidade que já não existia mais e que haviam migrado para cidade vizinha, logo se deram conta que ela seria a próxima. Houve, então, quem começasse a correr na direção contrária a margem da poça que avançava sem se dar conta da inutilidade do esforço; por mais que corresse um dia iria encontrar a margem oposta; além do que, a poça era uma circunferência absolutamente perfeita, como o comprovaram os matemáticos que apareceram no programa de Domingo.
Foi neste mesmo Domingo em que se anunciou a ineficácia dos meios de que o homem dispunha para reter o avanço da merda que começaram os suicídios. Uma igreja fundada as margens do lago, intitulada "Igreja Escatológica", dizia que Deus chamava seus fiéis para o encontro definitivo e muitos que se achavam geograficamente distantes do fim, correram em direção ao mar de fezes e se atiraram alegres para dentro dele.
Alguns que, cônscios do fim inevitável, compuseram suas melhores canções, declamaram seus melhores versos e pintaram seus melhores quadros; outros arrependidos de não terem tentado, tentaram; outros ainda fizeram amor com a volúpia dos condenados.
Aqueles que tentaram fugir pelo mar se arrependeram de alimentar esperanças que soçobraram ,literalmente, junto com seus países. A merda engolia não só o mar , mas tudo o que se supunha flutuar sobre ele; porque não era um lago qualquer que se deixa navegar, aquele lago era de merda e merda que não se quer navegada.
Outros que tentaram fugir pelo ar logo descobriram que não tinham onde pousar e mergulhavam das alturas direto para o grande oceano de fezes.
Aos poucos as montanhas foram também sugadas e logo o clima mudou porque os ventos correram sem barreiras e os poucos homens que ainda restavam cogitaram sobre qual seria a aparência da terra agora se fosse vista da lua; o azul do mar não mais existia; certamente algum astronauta que andasse por lá estranharia o marrom dominante.
Já não há mais comunidades humanas sobre a terra e duvido muito que algum animal tenha resistido a merda ou a caça , da qual o homem se tornou adepto logo que as plantações desapareceram e o alimento alternativo, deixou de ser uma opção para ser o único disponível. A felicidade é que não havia tempo para se morrer de inanição, se morria mesmo era sugado pela merda.
Antes que eu também fosse tragado tive tempo de ver que sobre a grande superfície inundada de merda crescia um pedestal; como se fosse uma estalagmite ou um obelisco de fezes.
"A merda não está contende em nos servir de tapete e quer também nos cobrir como um véu".
Foi o que pensei , quando a última coisa que vi foi a merda tentando chegar ao céu.

* Náufragos : Este conto faz parte da obra original deste autor: Contos, crônicas e outros pedaços.

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